Implicações dos incêndios rurais no meio aquático
Os mais de 100.000 ha de área ardida no corrente ano não podem deixar de nos fazer refletir sobre as consequências deste desastre ambiental, nomeadamente em termos de perda de solo nas bacias hidrográficas. A cor negra que apresenta o solo florestal após o fogo deve-se à acumulação de cinzas e folhada parcialmente consumida. As propriedades do solo são fortemente afetadas, verificando-se, frequentemente, um aumento do pH e da condutividade elétrica (esta devido à mineralização da matéria orgânica), afetando a capacidade enzimática do solo. Á superfície podem atingir-se temperaturas de 500-800 0C, até mesmo de 1.440 0C, mas como o solo é mau condutor a diminuição da temperatura em profundidade é muito acentuada a níveis inferiores aos 5 cm de profundidade. Outra consequência do fogo resulta no aumento da hidrofobicidade (repelência à água) do solo, processo que se intensifica continuamente até aos 250 ºC, com efeitos diretos na diminuição da infiltração da água, resultado da acumulação de cinzas, volatilização dos compostos orgânicos e posterior condensação nas partículas do solo. O carbono e o azoto tendem a ser completamente volatilizados a temperaturas superiores a 550 ºC enquanto que elementos como cálcio (Ca) e magnésio (Mg), necessitam de temperaturas mais altas para serem volatilizados, acabando por ser exportados através das cinzas. Acresce que o mencionado aumento do pH e da condutividade favorecem também a solubilidade de catiões como Ca, Mg, sódio (Na) e potássio (K). Saliente-se que, mesmo para temperaturas superiores a 80 ºC, verifica-se já uma alteração profunda na flora microbiana do solo, com o seu desaparecimento completo acima dos 150 ºC.
Fogo em progresso em Andrães, Vila Real (2018)
Os fatores acima mencionados favorecem a erosão hídrica (e a lixiviação de nutrientes), causada pelo efeito splash (mobilização das partículas de solo com a energia cinética das gotas de água) e pelo escoamento superficial, variando de acordo com a intensidade e quantidade da precipitação, bem como do comprimento da encosta e rugosidade superficial, aspetos potenciados pela mencionada impermeabilização das camadas superficiais. As alterações hidrológicas que podem ocasionar cheias intensas e perdas de solo são muto variáveis de acordo com a natureza da combustão. Acresce que a estrutura, textura e porosidade do solo variam também com as condições térmicas verificadas à superfície durante o fogo. Por exemplo, os incêndios muito intensos podem levar à fusão das argilas e ao aumento proporcional do limo e areia. Embora a literatura disponível aponte números muito variados, perdas de solo extremas podem variar entre 20 a 170 ton. ha-1 /ano, não só em Portugal, mas também na Bacia Mediterrânica.
As consequências da erosão são difíceis de avaliar dado que, com altas temperaturas, pode ocorrer a recristalização de alguns minerais, essencialmente hidróxidos de ferro (Fe) e alumínio (Al), o que sendo positivo, por aumentar a estabilidade do solo, traduz-se em baixos teores de matéria orgânica, afetando a regeneração da vegetação. Por sua vez, com a ausência de vegetação em declives moderados a elevados existe uma elevada suscetibilidade para a formação de ravinas, aumentando a escorrência em detrimento da infiltração. Após o incêndio a declividade passa a ser o fator condicionante da perda de solo, o que acontece especialmente em solos incipientes. Por sua vez, os impactes da erosão torrencial levam ao transporte de sedimentos para as linhas de água, com o concomitante assoreamento dos rios, diminuindo a sua capacidade de vazão, incrementando cheias rápidas e potenciando ainda a erosão fluvial. Um aspeto fundamental que influencia a taxa de escoamento superficial e a eficácia no transporte de materiais ao longo da vertente (material inerte e material lenhoso) prende-se com a existência de obstáculos ao longo da encosta, desde descontinuidades geomorfológicas a barreiras introduzidas pelo homem (ex. estradas, terraços, etc.).
Cenário de pós-fogo junto a uma linha de água (Mação, 2019)
Decorrente dos incêndios ocorridos neste Verão de 2022 será de esperar que o próximo Inverno (e o do ano seguinte) coincida com o período mais crítico para o aumento do escoamento e perda de solo, bem como para o input de azoto e fósforo nas linhas de água, neste caso conduzindo à sua eutrofização, para além do carreamento de sedimentos colmatando os leitos, criando problemas adicionais de erosão fluvial, devido à acumulação destes materiais criar uma forte resistência ao fluxo de água, reduzindo as secções de vazão das passagens hidráulicas devido ao assoreamento. Do ponto de vista ecológico, a deposição de finos leva à destruição de zonas de desova dos peixes e à asfixia das comunidades bentónicas (que habitam o substrato), com o concomitante impacto na biodiversidade. Acresce que, em situações de seca, como a que ocorre atualmente, é atrasada a recuperação da cobertura vegetal, pelo que os picos de cheia a ocorrerem nos próximos meses podem ter um efeito dramático na perda de solo, embora seja expectável que os fenómenos de erosão se possam prolongar até cerca de 1 década, mas diminuindo progressivamente.
A elevada recorrência de incêndios (por vezes com apenas 4-5 anos de intervalo,) numa mesma bacia, agrava progressivamente a sua impermeabilização e faz com que se produzam hidrogramas com ramos ascendentes mais declivosos e antecipados, isto é, com picos de cheia não só de maior magnitude, mas também, mais rápidos após a chuvada, podendo afetar a segurança das próprias populações pelas inundações súbitas.
Tudo isto aponta para que seja necessária uma intervenção muito rápida após o fogo, adotando as medidas designadas como “estabilização de emergência” que devem ser particularmente destinadas a zonas de alto risco de erosão, frequentemente associadas com a severidade do fogo. Assunto que certamente merecerá um próximo artigo sobre este tema…