Artigo de opinião

A conectividade fluvial em Portugal - I: estado atual

Comissão Especializada da Qualidade da Água e dos Ecossistemas

A fragmentação dos sistemas fluviais causada pela construção de obstáculos, tais como barragens e açudes (Fig. 1), constitui uma das principais causas da perda de habitat de muitas espécies aquáticas, em particular da ictiofauna. Este tipo de estruturas pode impedir de forma total ou parcial os movimentos dos peixes entre os diferentes tipos de habitats (reprodução, alimentação, refúgio) necessários para que aqueles completem o seu ciclo de vida. O impacto negativo daquelas barreiras nas espécies piscícolas pode ser bastante variável, desde pequenos atrasos na migração até ao limite de constituírem uma obstrução completa, dependendo como tal do tipo de obstáculo, das condições hidrológicas presentes e da(s) espécie(s) em questão (p.e. da condição fisiológica e capacidade natatória). Barreiras completas impedem que os peixes consigam aceder aos habitats essenciais para a reprodução, causando eventuais declínios significativos das respetivas populações, que assim ficam fragmentadas, sofrendo futuramente um maior risco de extinção. Alternativamente, barreiras parciais ou temporais (por exemplo, pequenos açudes rústicos) podem bloquear os movimentos de uma parte da população que apresente menor capacidade natatória (geralmente estágios de vida mais jovens), ou reduzirem o acesso a montante em determinadas alturas do ano (p.e. em situação caudal elevado ou reduzido). O bloqueio completo e parcial ou temporal aos movimentos migratórios pode impactar significativamente as populações piscícolas, através do aumento da mortalidade, da predação e do decréscimo de ovos e juvenis, conduzindo a processos de bottleneck genético e a alterações na dinâmica de meta-populações e meta-comunidades. Além disso, os poucos estudos existentes sobre o efeito de obstáculos fluviais na ictiofauna têm-se centrado, na grande maioria, em obstáculos isolados, infelizmente sem ter em conta o efeito cumulativo que várias barreiras em sequência podem ter na sustentabilidade das diferentes populações de peixes.

Figura 1 – Obstáculos fluviais mais frequentes nos cursos de água (da esquerda para a direita): grande barragem, pequena central hidroelétrica e açude rústico.

A ictiofauna dulçaquícola em Portugal é constituída por 62 espécies, das quais 43 são nativas, cuja maior parte efetua movimentos migratórios durante o seu ciclo de vida (Fig. 2). Estes movimentos são em grande parte despoletados pelas variações sazonais no caudal fluvial e na temperatura da água, características do clima Mediterrânico, ocorrendo sobretudo no período de reprodução (na primavera para os ciprinídeos e sáveis/savelhas, e entre o outono e o inverno para salmonídeos, como a truta-de-rio, entre outros), mas também ao longo do ano, para procura de locais de alimentação e de refúgio. Como tal, no seu conjunto, as várias espécies piscícolas presentes em cada rio, apresentam alguma forma de migração durante a maior parte do ano, enfatizando a necessidade de livre circulação ao longo do continuum fluvial.

Figura 2 – A ictiofauna nativa Portuguesa é constituída sobretudo por ciprinídeos dos géneros Luciobarbus (barbos), Pseudochondrostoma (bogas de boca recta), Squalius (escalos), e outras pequenas espécies residentes (géneros Achondrostoma, Anaecypris e Iberochondrostoma), algumas com elevado estatuto de ameaça.

Em Portugal existem cerca de 256 grandes barragens e mais de 8000 pequenas infraestruturas hidráulicas transversais nas regiões hidrográficas do continente, que de alguma forma constituem barreiras à migração piscícola nos sistemas fluviais (Fig. 3). Desta forma, a perda de habitat e as alterações hidromorfológicas têm sido apontadas como o principal impacto da fragmentação fluvial, comprometendo as metas ambientais não só da Diretiva Quadro da Água (2000/60 /CE) – em cujo o Anexo V se descreve os critérios de avaliação para a determinação do estado ecológico e onde se inclui a continuidade fluvial como um dos indicadores de qualidade hidromorfológica que deve ser tido em conta aquando daquela avaliação -, mas também da Diretiva Habitats (92/43/CEE) e do Regulamento que estabelece medidas para a recuperação da unidade populacional de enguia europeia (1100/2007/CE). Consequentemente, a promoção e a melhoria da continuidade fluvial são um tema explicitamente mencionado na nova Estratégia de Biodiversidade da União Europeia para 2030, que entre outras metas a atingir, prevê o restauro da continuidade fluvial, numa extensão de, pelo menos, 25 000 km.

Figura 3 – Infraestruturas hidráulicas transversais em Portugal Continental (Fonte: APA – Agência Portuguesa do Ambiente).

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